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Foto do escritorMulheres Cannábicas

haxixe, carnaval e germinares

5/4/2018 - Emily Bandeira





Numa dessas manhãs de Carnaval, choveu. Choveu uma chuva diferente. Uma chuva que chovia com mil cheiros e sem cheiro nenhum, uma chuva que viajava por mil cores e não tinha cor alguma. Essa chuva choveu ali, numa casa de Carnaval, embalando o sono de uns e abrandando a loucura de outros. Caía na terra, alimentava as plantas e outras possibilidades. Calhou que na noite anterior, ali mesmo no jardim da casa, amigues que esfriavam seus corpos quentes da folia, se redobravam nas proezas comunicativas. O desafio noturno de revelar aos outros — e talvez a si mesmos — diante de palavras, todas as sensações experimentadas ao longo do dia. Enquanto buscavam as palavras purpurinadas para tramar as histórias carnavalescas, um movimento de mãos envolvia uma pérola negra. É que os amigues possuem artifícios de sintonia. São cheirosos e frutos de elaborações quase inimagináveis. Uns, são belos frutos de mãos, outros, de manipulações espertas. Os amigues preparam um haxixe. Mas eis que, da confusão tamanha, gerada pelos movimentos dos dedos — devidamente alterados pela confusão da cabeça — a pérola escapa, cai em direção a terra do jardim. Os amigues reclamam, se entristecem de terem deixado o haxixe cair das mãos. Agora, lhes parecia impossível recuperá-lo. Milhares de fragmentos de terra ali se misturavam, criando a ilusão de diversas bolinhas perolares. Procuraram, procuraram, abaixaram suas cabeças ao nível do chão, apertaram os olhos, buscaram esperançosos com os dedos e, em vão, tocavam pedaços de terra. Foi preciso um acordo mútuo entre todos, entristecidos pela perda, para que não se deixassem abalar. Que buscassem mais haxixe e prosseguissem com suas anedotas foliãs. E assim o fizeram. Deixaram que o jardim se apropriasse do haxixe derramado. Conversaram suas loucuras a luz da fumaça de outras pérolas. E, por fim, foram dormir. A madrugada estava agradável. O barulho de chuva embalava os sonhos e juntava-se ao balanço das redes espalhadas na varanda. Enquanto chovia, coisa nova acontecia. Parece que essa chuva, de tão especial, por ter mil cheiros e não ter cheiro nenhum, por ter mil cores e não ter cor alguma, pingava nos sonhos de todos. E pingava, pingava, adentrava os sonhos e corria correnteza bravia nos inconscientes. De tanto pingar nos inconscientes do carnaval, de tanto aderir o onírico a sua composição, a chuva transbordava das mentes e aguava as plantas do jardim. Assim, a mangueira absorvia dos sonhos toda espécie de absurdos e criava suas mangas rosas. A goiabeira se alimentava das loucuras íntimas de cada um e fortalecia ainda mais as fibras de seus galhos. O jasmim não fazia comentários, absorvia a água da chuva de sonhos silenciosamente. E, ali, misturado a terra, encontrava-se o haxixe. É compreensível que, a princípio. se pense que o haxixe aos poucos se alimentaria da psicodelia dos sonhos e se desfaleceria junto a grama do jardim. Quiçá, uma vez dissolvido, virasse nutriente para as outras plantas, não? Certamente uma pena que uma pérola de essência tão olfativa, derretesse assim, numa chuva tão insana. Mas não foi bem isso que aconteceu. O haxixe se alimentou sim da água da loucura dos sonhos. Acontece que, entre um plano e outro de existência — ainda não se sabe se neste nosso tradicional plano ou se no plano sonhante dos cheiros — o haxixe enlouqueceu por completo. Enlouqueceu. O haxixe enlouqueceu? Sim, sim. Enlouqueceu tanto a ponto de esquecer que, não mais como ser vivo, ele não podia enlouquecer. E foi tanta a folia naquela madrugada molhada de carnaval que o haxixe transmutou as tão consideradas leis da natureza. Primeiro enlouqueceu. Uma vez enlouquecido admirou-se com a vivacidade de sua loucura. Loucura viva, viva. Tão viva que lhe permitia a qualidade de vida como consequência. E foi assim que a pérola negra, caída na terra fértil, percebeu-se essência de existência. Seu formato de introspecção não podia menos que gerar na pérola qualidades germinantes. Germinava da loucura, no interior da pérola, inquietação. Inquieta estava a pérola porque percebia-se transformar. O que antes se constituía lombra, brilho, essência de haxixe, agora parecia pulsar movimento. Expansão e contração de qualquer coisa. Alquimia catalisada pela chuva onírica. Se a coisa possuía consciência ou não sobre sua movimentação não sei dizer. Sei que o que antes era pérola agora pulsava semente. Pulsava uma essência semente sincera. E escorria, junto a água, para dentro dos sulcos da terra. Então, percebendo sua nova condição de existência, a semente de haxixe passa a entender a terra e a água como alimentos. Após a turbulência da tempestade e do nascimento, a semente está pronta para receber o tempo. A luz matinal lhe traz a mensagem temporal. Lhe diz, com candura e calor do sol da manhã, que a alquimia de estar vivo se completa. Que agora que o haxixe virou semente não lhe resta mais que aceitar as condições do tempo e viver. E assim, vibra. Dentro de si, a semente de haxixe se remexe. Ela compreende a condição de início. Ela germina. Ela sabe agora estar em direção ao fim. O que acontece entre uma ponta e outra desse fio ela resolve brotar. Planta não pensa muito no cronos. Planta brota e promete, silenciosamente, magias de kairos. Planta que brota de semente de haxixe? Promessas de sintonias anacrônicas. Promessas de euforias sincrônicas.






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