A minha primeira preocupação ao escrever esse texto é que ele sirva pra mostrar uma realidade um pouco obscura para várias pessoas diferentes. Para as mulheres que não amamentam (seja por qual motivo), para as que amamentam (e precisam ou não de ajuda), para todas as outras pessoas que se importam com as mulheres mães do Brasil, e para as pessoas que provavelmente, como eu há alguns meses, não fazem ideia do tamanho dessa questão.
A questão da amamentação é, como muitas outras, uma questão de poder de escolha. Não se pode escolher a menos que se seja livre para de fato viver suas escolhas. Não se pode escolher se não há informação apropriada sobre as opções. Não se pode escolher se uma das escolhas custa um sacrifício sobrehumano para que dê certo.
Somente quem nasce com anatomia e química femininas possui o poder de criar um ser humano. Às vezes a gente esquece que isso é um grande poder. É talvez o maior poder que um animal possui. O poder de fazer a partir de uma célula um ser igual a nós. E na condição de exercer um dos maiores poderes que temos, é que somos mais controladas, mais atingidas e mais vulneráveis enquanto mulheres. Desde o momento da decisão subjetiva de usar esse poder ou não. Da contracepção até a adultez dos filhos. A maternidade é a posição de poder mais vulnerável e depletada de escolhas reais. Coloca um alvo nas nossas costas.
Atualmente no Brasil, depois de muito esforço e produção de muito conteúdo importante, se tem maior conhecimento do que ocorre com mulheres na ocasião do parto. A violência obstétrica é mais reconhecida que há alguns anos (apesar dos esforços de alguns para apagar seu nome, seu reconhecimento). Sabe-se um pouco mais sobre as práticas violentas como episiotomias e induções feitas para economizar tempo dos médicos. Boa parte das pessoas entende que a escolha por partos cirúrgicos hoje não é sempre uma escolha, mas é, na esmagadora maioria das vezes, uma opção pelo “menos pior”, pelo possível, uma opção forçada ou cercada de desinformação pela classe médica, contrariamente às recomendações de todos os órgãos sérios.
A decisão de amamentar ou não é também uma decisão constantemente roubada. Embora ainda não haja estatísticas, embora seja ainda mais multifatorial e mais social do que a escolha de via de parto.
Por que falar sobre esse tema?
Um dia eu estava em uma das várias comunidades virtuais das quais participo para tratar de assuntos referentes à criação de seres humanos, e vi a enésima publicação buscando ajuda para amamentar após receber más notícias num consultório médico. O pediatra em questão pediu para apalpar os peitos da mãe, e constatou “Tá vendo? Murchos! Não tem leite! Seu bebê está passando fome.” Seguindo para receitar fórmula. Eu pensei: precisamos listar essas histórias. São inúmeras as desculpas utilizadas para recomendar o desmame de um bebê por parte de profissionais de saúde. Inúmeras, e na esmagadora maioria das vezes, falsas e contrárias à ciência, às recomendações dos órgãos de saúde, e ao próprio respeito pela escolha da mãe. São tantas, que toda vez que vejo uma história triste sobre a amamentação agora, olho desconfiada para o apoio profissional. Pode atingir qualquer uma, em qualquer lugar do país e em qualquer condição financeira. Quando eu vi na mesma semana a Taís Araújo chorar ao contar não ter podido amamentar sua filha, me perguntei imediatamente se ela, mesmo ela, foi vítima desse roubo de decisão. E foi assim que comecei a coletar dessas histórias, usando apenas minhas redes sociais. Em um curto período de tempo, arrecadei 180 delas através de um formulário (https://forms.gle/UTYff7fUs2kkhgXZ7 , permanece aberto para quem quiser contribuir). E é com base nessas histórias, disponíveis no final desse texto, que escrevo aqui.
A maior parte das participantes passou por suas experiências no estado de São Paulo, não houveram participantes dos estados do Norte com exceção de Rondônia, e da maior parte dos estados do Nordeste
Eu não sou especialista em amamentação ou médica. Sou uma mãe e cientista, o que me privilegiou com a capacidade de fazer uma leitura crítica e de buscar referências bibliográficas sérias sobre todas as dúvidas que tive durante a amamentação. Eu amo ciência. Me pauto por ela em tudo que posso. Sei de suas limitações, mas acredito que seja um dom supremo humano como arte: para apreciar e usar o máximo possível. Fico sempre chateada em vê-la escanteada por movimentos anti-vacina, por exemplo. Mas como posso convencer as mulheres que conheço que devemos seguir a ciência, que vacina é importante, quando elas sofrem violência atrás de violência por parte de profissionais que se escondem sob um escudo de homens e mulheres de ciência? Não faltam grupos de mulheres hoje em busca de aprender uma ginecologia autônoma, para acumular pra si mais uma tarefa de cuidado, por não poder confiar na sociedade para cuidar delas. Na água do banho, às vezes vai o bebê junto: a ciência como um todo. Junto com os interesse espúrios da indústria farmacêutica joga-se a ciência biomédica e farmacêutica. Eu entendo. Quero mudar isso. Faço o possível para explicar o que posso, como cientista reconheço nossas limitações com relação à comunicação com a sociedade. Eu entendo muito mais uma mulher que tem medo de vacinar uma criança do que um médico que pede para apalpar um seio e receita fórmula para um bebê sadio sem explicação. Sem a ajuda dos profissionais em quem confiamos para conhecer e utilizar ciência, não poderemos também mudar essa situação. Enfim, estou divagando.
“DISSE QUE JÁ ESTAVA NA HORA DE DESMAMAR POIS MEU BEBÊ IRIA COMPLETAR 1 ANO E O MEU LEITE NÃO TINHA MAIS NENHUM NUTRIENTE NECESSÁRIO. AINDA FALOU QUE EU ESTAVA COM MASTITE POIS MEU FILHO ‘ARROTOU NO MEU PEITO’” — ginecologista para mãe de bebê de 6 meses
Por que é difícil amamentar?
Talvez se você for como eu era antes de ser mãe, você já tenha ouvido que amamentar é muito difícil. E criava uma ideia vaga sobre por quê. Afinal, por que é difícil amamentar, quando deveria ser uma atividade inerente à nossa biologia como comer, fazer sexo, fazer xixi? Eu mesma, achava que doía. Que a depleção de sono para amamentar era o principal problema. Pois bem, amamentar é difícil, mas é difícil principalmente por um milhão de razões que não têm nada a ver com a biologia. Existe sim a parte física sofrida, dor, rachaduras, ingurgitamento, ductos entupidos, mastites, etc. Mas me parece que a parte mais difícil da amamentação tem mais a ver com sua posição na sociedade. Enquanto para os problemas físicos há, na maioria dos casos, soluções simples, para problemas estruturais o buraco é sempre mais embaixo.
A amamentação existe num lugar unicamente confuso e nebuloso: entre o sacrifício e o prazer, entre a dependência e a independência da mulher, dependência e independência do bebê, entre o progresso e o passado.
“AMAMENTAÇÃO MATERNA EXCLUSIVA E PROLONGADA É PARA MÃES POBRES QUE NÃO TÊM DINHEIRO PARA COMPRAR LEITE DE QUALIDADE PARA O BEBÊ ”— Pediatra para mãe
Há ainda a rotulação em muitas partes do mundo de que a OMS apoia a amamentação apenas para quem não pode pagar fórmula, e amamentar é algo selvagem. Enquanto a amamentação pode ser vista como uma escolha que cabe apenas à mulher e a criança, como política pública, estimular a amamentação é economizar bilhões em gastos médicos e diminuir a mortalidade infantil. Não apenas nos países pobres, mas em qualquer lugar. O valor da amamentação especialmente nos primeiros meses de vida é indiscutível para a sociedade como um todo, mas não necessariamente para o mercado.
“MINHA BEBÊ IA COMEÇAR NA CRECHE, ENTÃO EU ME PREPAREI PRA CONSEGUIR MANDAR LEITE MATERNO PARA ELA, SEGUI AS RECOMENDAÇÕES DO BANCO DE LEITE. QUANDO PASSEI COM A PEDIATRA DO UBS ELA ME DISSE QUE MEU CORPO NÃO IA PRODUZIR LEITE SUFICIENTE, QUE EU SÓ IA ME ESTRESSAR E ERA MELHOR DAR FÓRMULA LOGO”— Relato de mãe de bebê de 3 meses
O desmame é lucrativo para a indústria alimentícia, mas também para todo o mercado, uma vez que as mães podem voltar a trabalhar mais, e mais rapidamente.
Aqui na Suécia, onde moro, o uso de mamadeiras é associado à divisão mais equalitária das tarefas domésticas, e vira símbolo de liberdade para as mães, enquanto a amamentação é vista como algo que deve ser sempre bom, e nunca incidir num sacrifício materno, em prol da igualdade parental. Assim, mesmo com mais de um ano de licença parental, a amamentação “prolongada” é rara, e mesmo a amamentação exclusiva até os 6 meses é incomum. Amamentar tem altos e baixos, e como todo prazer, possui um preço. Mas não deveria ser sinônimo de sacrifício materno, muito menos causar vergonha ou ser associada com machismo, uma vez que escolher amamentar também envolve ter a autonomia para ouvir nossos corpos e respeitá-los.
“BEBÊ DE 1 ANO NÃO PRECISA SER AMAMENTADO. A OMS FALA Q É IMPORTANTE MAMAR, NÃO EXATAMENTE NO PEITO, TEM BEBÊ QUE SÓ ‘CHUPETA’, NÃO ADIANTA. MINHAS PACIENTES TÊM UM CERTO PODER AQUISITIVO…” — Pediatra
Até quando amamentar é importante?
Estudos antropológicos mostram que em sociedades humanas atuais, à parte da nossa sociedade ocidental, o desmame ocorre entre 2 e 4 anos de idade, em média. Quando mães na nossa sociedade decidem também deixar o desmame ocorrer naturalmente por parte da criança, ele ocorre em média entre 3,5 e 4,5 anos, dentro da idade prevista para o desmame do ser humano como espécie, que seria de 2,5 a 7 anos. De forma que a recomendação da OMS de amamentar até 2 anos de idade ou mais é completamente dentro do esperado para a nossa natureza. Tanto que, para a imensa maioria dos bebês desmamados antes dos 2 anos, é imperativo o uso de leites de outras espécies para nutrição adequada do bebê. O que ocorre é a substituição do leite humano pelo leite de outra espécie. Assim, não deveria ser muito mais estranho ver um bebê desmamado aos 6, 7 ou 8 meses, do que ver uma criança de 3 anos amamentando? Por que então um é visto como normal e o outro é visto como absurdo? Muito se deriva desse questionamento “progressista” de que “a mãe não precisa passar por isso”. E não acho que precisa. Mas acredito que muitas mães poderiam fazer essa escolha se a sociedade fosse mais adaptada a respeitar nossos desejos e necessidades como espécie. Progresso mesmo seria incluir o desejo de mãe e bebê, a naturalidade de manter o que ambos os corpos sentem adequado. Colocar como padrão e prioridade aquilo que traz mais vantagens para saúde da mãe e do bebê. Não há dúvidas nem polêmicas com relação à superioridade do leite materno em comparação às substituições artificiais. Nem com relação aos benefícios da lactação para saúde materna (diminui riscos de câncer, contribui para evitar a depressão pós-parto, entre outros).
“NÃO VAI NA DE PEDIATRA QUE FALA QUE AMAMENTAÇÃO É IMPORTANTE. PENSA EM VOCÊ” — Ginecologista
Quando a mãe é cobrada em seu trabalho, em sua apresentação estética, em seu relacionamento, a estar 100% presente “como antes” de ter filhos enquanto ainda cuida de um bebê, ou quando não possui uma rede de apoio que permita que ela consiga sequer se alimentar apropriadamente durante o puerpério, ou quando sua carreira depende de um investimento de tempo desproporcional para atingir seus objetivos (numa sociedade em que o trabalho doméstico é desvalorizado, e apenas um trabalho que é remunerado financeiramente pode atribuir valor ao ser humano), não há como acreditar que o tempo necessário para manter a amamentação até 2 ou 3 anos não é um sacrifício. Amamentar porém pode ser um grande prazer, uma grande conexão entre bebê e mãe, um ato de amor e bem menos sofrido do que se faz ser, quando há suporte para a mãe. Tem poucas coisas que fiz na minha vida tão recompensadoras quanto amamentar. Essa é a minha experiência particular de mulher extremamente privilegiada. Esperar que todas tenham a mesma vivência seria utópico e irreal, mas é uma experiência humana e possível.
“ EU ESTAVA CONTANDO À ENFERMEIRA CHEFE QUE TINHA SIDO O PRIMEIRO DIA QUE RECEBERAM SOMENTE MEU LEITE. A PEDIATRA DO PLANTÃO SE METEU NA CONVERSA AFIRMANDO QUE COM ISSO EU ESTAVA ATRASANDO A ALTA HOSPITALAR E COLOCANDO ELES EM RISCO POR CAPRICHO MEU.” — Relato de mãe de gêmeos prematuros com 3 dias de vida
O sistema pró-desmame
Além dessas exigências de conformidade que requisitam o tempo e atenção das mães, há muitos moinhos contra os quais as mães precisam lutar. Há um número imenso de regras e posturas impostas às lactantes que não possuem embasamento mas limitam a qualidade de vida da mulher que amamenta constantemente. Restrições alimentares (não pode comer alho, feijão, beber refrigerante, e um número infinito de outros alimentos), restrições posturais (só pode amamentar sentada, com o bebê na posição deitada), restrições de local (não pode amamentar na rua, não pode sair de casa com o bebê antes de 3 meses, precisa colocar um paninho, precisa ter um local apropriado protegido de olhares), restrições temporais (só pode amamentar de 3 em 3 horas, não pode amamentar à noite) são completamente culturais e não tem nenhuma sustentação em evidências, no entanto, são transtornos pelos quais a mulher precisa passar para continuar amamentando em muitos casos, tornando a vida muito mais difícil.
É muito difícil seguir com algo que exige um esforço físico, quando além deste precisamos estar sempre lutando para ignorar os olhares e comentários alheios. Seria como se alguém te dissesse que fazer exercício físico e ter uma dieta balanceada faz bem, previne doenças, é o melhor para sua saúde. Logo em seguida olhasse feio para você se te visse com roupa esportiva, te falasse para só fazer exercício em casa, no horário apropriado. Te dissesse que depois de certa idade é imoral se exercitar. Te perguntasse sem contexto quando você pretende parar de se exercitar. Dissesse que exercício físico é coisa de pobre. Na TV, nas bonecas, em toda parte, não houvesse referência alguma de exercício físico como algo positivo. Uma gripe seria dada como motivo médico para parar de se exercitar para sempre. Nunca houvesse tempo para se exercitar porque o trabalho te consome o dia todo. De repente, exercício físico parece um sacrifício muito maior do que um prazer e um desejo inerente do nosso corpo não é?
“A PEDIATRA DISSE QUE ERA ERRADO FAZER LIVRE DEMANDA E QUE EU DEVERIA ORGANIZAR AS MAMADAS DE 3 EM 3H. QUANDO QUESTIONEI O QUE DEVERIA FAZER SE O BEBÊ CHORASSE ANTES DISSO ELA DISSE QUE DEVERIA DAR CHUPETA OU DEIXAR CHORANDO. ELA TAMBÉM QUIS APERTAR MEU PEITO PARA VER SE ESGUICHAVA LEITE, RECUSEI.” — Mãe sobre consulta com bebê recém-nascido
Muitas das histórias que recebi não dizem respeito à recomendação direta de desmame, porém são histórias de recomendações que dificultam a amamentação, ou que podem interferir no sucesso dela. São pequenas sabotagens, que podem ser inócuas ou danificar permanentemente o aleitamento. Há poucos estudos científicos com robustez com relação a boa parte das recomendações para lactantes e lactentes saudáveis. Sabe-se que o uso de mamadeiras é prejudicial. Sabe-se que o uso de chupetas pode ser indiretamente prejudicial também. Sabe-se que a livre demanda é importantíssima especialmente no início da amamentação, e sempre que a mãe estiver presente. Mas cada fator isolado não é diretamente relacionado a um risco de uma forma estatística clara.
As recomendações deveriam ser feitas com seus devidos resguardos e individualmente. Sem terrorismo psicológico, acima de tudo.
A insuficiência de leite, o puerpério e o bebê que “passa fome”
Ao mesmo tempo, quando uma mãe não amamenta, muitas vezes por ter sido consumida por esse sistema pró-desmame, também sente-se culpada. Muitas vezes isso já ocorre por ter recebido recomendações inapropriadas como as que estão listadas abaixo. Não há vencedoras nessa história. Não é incomum comentários do tipo “não sou menos mãe”e “fed is best” — alimentado é melhor, como resposta ao jargão “ breast is best — peito é melhor”, ou “fórmula não é veneno”, que visam combater esse sentimento de culpa da mãe que não amamenta. E essa é a questão: deveria ser simples amamentar. Poderia ser mais fácil, mais comum. E assim menos mulheres fariam a opção de oferecer outros leites. Mas essa é ainda uma alternativa importante para as que de fato não podem amamentar por uma série de motivos médicos reais, ou por outras razões. A melhor opção pra cada família nunca será a mesma. Cada uma deve escolher livremente, sabendo o valor de cada escolha, o que é melhor para si e para suas crianças. Não dá para julgar uma mãe esgotada, que tem que escolher muitas vezes entre entrar em depressão por não conseguir atender a todas as demandas ou parar de amamentar. Não dá para julgar uma mãe que possui objetivos de vida e prioridades que requerem que ela pare de amamentar para serem cumpridos. Mães não precisam ser “padrão-ouro-que-coloca-os-filhos-acima-de-absolutamente-tudo-incluindo-a-própria-saúde-e-felicidade”. Só precisam ser livres para escolher. Sabendo a sociedade que o aleitamento materno é o melhor para as crianças — que são os bens maiores de toda sociedade — deveria a sociedade criar condições para que acontecesse o máximo possível. Crianças precisam parar de ser responsabilidade apenas da mãe. Quando um profissional de saúde deveria ajudar uma mãe que trabalha a aprender como manter o aleitamento caso deseje, e oferecer ferramentas para lidar com isso de maneira prática, como com informações sobre extração de leite, oferta por outros cuidadores, redução do número de mamadas em crianças mais velhas e congelamento do leite, muitas vezes a mulher se depara com uma profecia não solicitada: você não vai conseguir ter leite suficiente.
“O PEDIATRA ORIENTOU QUE EU DESSE UM ANTIALÉRGICO PARA QUE MINHA FILHA DORMISSE A NOITE TODA, JUSTIFICANDO QUE NÃO ERA SAUDÁVEL ELA ACORDAR PARA MAMAR” — Mãe sobre consulta com bebê de 9 meses
Proporção de mães com as quais a experiência relatada ocorreu com seus primeiros filhos
Outra vítima de expectativas irreais é a própria criança: por algum motivo, elas também tem sido vítimas de uma medicalização excessiva e de padrões imaginários desde dias após o nascimento. Dentro dos relatos coletados, vários contrariam a amamentação para modular o comportamento dos bebês, chegando ao extremo de recomendar medicação para o sono do bebê, pois não seria saudável permitir que ele acordasse durante a noite para mamar. Parece-me que o desejo de muitos é de que os bebês não ajam de acordo com sua biologia, e desde o nascimento comecem a se comportar de maneira conveniente para o nosso estilo de vida. O bebê que chora precisa parar de chorar, o bebê que acorda precisa parar de acordar, e o bebê que mama precisa demais da mãe e portanto precisa parar de mamar. Frases que colocam a “independência” do bebê como razão para o desmame são frequentes. Como se não fosse próprio da natureza de bebê ser dependente, chorar, e procurar conforto. O choro do bebê às vezes é tão “inesperado” pelas mães e médicos, que é diretamente atribuído à fome como única possível razão. E nessa armadilha, a amamentação é a vítima em um grande número de casos. O bebê chora, necessariamente é fome, portanto o leite não está alimentando, portanto é preciso de mais alguma coisa. Fórmula, chupeta. Principalmente para mães de primeira viagem, mais de 85% das mulheres que responderam ao formulário, que possuem menos segurança, é difícil confiar no próprio corpo e compreender que o bebê pode chorar por diversos motivos sobre os quais não temos controle. Cólicas, ansiedades, o incômodo físico de crescer num ritmo acelerado. Bebês choram e acordam porque são bebês, e às vezes tudo o que podemos oferecer é tempo, paciência e um pouco de carinho. Mas tempo, paciência e carinho muitas vezes está em falta para nós.
“SEU BEBÊ SÓ ESTÁ ENGORDANDO 20 GRAMAS POR DIA, OU ELE ENGORDA 30 GRAMAS [por dia] EM 3 DIAS NO RETORNO OU PODE COMPLEMENTAR COM 8 MAMADEIRAS DE FÓRMULA POR DIA.” — Pediatra para mãe de recém-nascido
Acrescenta-se a todo esse contexto o componente hormonal: decisões importantes para a o sucesso da amamentação são feitas no momento mais delicado. Após o parto e por meses após o nascimento, a mulher encontra-se com emoções intensas e à flor da pele devido à readaptação do corpo após a gravidez somada à mudança de vida que traz o nascimento de um filho. Esse período, o puerpério, é por si um grande desafio, e é em pleno puerpério que a mãe precisa aprender a amamentar (mesmo mães de múltiplos filhos podem ter dificuldades para ajustar a “pega”de um novo bebê, podem ter dores e problemas quando há a apojadura, ou descida do leite). É nesse momento que o apoio profissional é mais importante. As pesagens do bebê servem para ter uma ideia de como anda o desenvolvimento da amamentação, porém tornam-se um momento de ansiedade para as mães quando há uma pressão desproporcional para o ganho de peso de forma sistemática. Alguns pediatras “pedem” quase em tom de ameaça que a mãe apresente um bebê 30, 40 ou até 60 gramas mais gordo por dia. Como se houvesse um valor único universal para cada bebê, como se cada dia do bebê fosse exatamente igual. O bebê que está dentro de uma curva de normalidade porém encontra-se em percentis superiores ou inferiores passa a ser tratado como problema a ser resolvido com fórmula. O peso do bebê deixa de ser uma de várias características de seu desenvolvimento para ser uma prova contra a amamentação,e a anamnese, o exame completo acaba por restringir-se a essa avaliação numérica. Bebês que de fato parecem não estar sendo bem nutridos pela amamentação precisam ser avaliados sob diversas perspectivas. É preciso saber o que está acontecendo, e tentar corrigir o problema que gera esse baixo ganho de peso quando ele é real. Não é preciso jogar a amamentação fora como se fosse algo que desse certo ou não e pronto. Muitas vezes o próprio complemento inadequado com fórmula, uso de mamadeiras e chupetas, é parte da espiral que leva ao desmame. De todas as desculpas oferecidas por profissionais para interferir na amamentação em bebês recém-nascidos a mais comum é de baixo ganho de peso, seguida de “você não tem leite suficiente”.
Nuvem de palavras baseada nas descrições das mães sobre como se sentiram nessas experiências com profissionais contrários à amamentação
Categorização das ocorrências mais comuns dentro dos relatos recebidos
A própria maneira de estabelecer a insuficiência do leite é na maioria das vezes inválida. Apertar o seio, ver se está murcho, tirar leite com bomba, não são métodos válidos. Existem motivos médicos relevantes para baixa produção como por exemplo quando mães realizaram cirurgia de redução de mamas, situação em que as mães precisam de mais acompanhamento. Mas a maior causa de produção insuficiente de leite em mães saudáveis é estímulo insuficiente, que ocorre quando a amamentação não é oferecida em livre demanda.
Os preconceitos e os disfarces
“FREUD DIZ QUE APÓS 2 ANOS A MÃE AMAMENTA POR PRAZER SEXUAL E QUE O QUE SAI DO PEITO É APENAS ÁGUA E NÃO HÁ NENHUMA NUTRIÇÃO” — Dermatologista
Outro motivo, bastante clichê que atrapalha a amamentação é simplesmente o quanto é difícil numa sociedade patriarcal permitir a noção de que o corpo da mulher pode fazer algo que não é diretamente ligado ao prazer masculino. Incomoda ver uma mulher com corpo de atleta, incomoda ver uma mulher lésbica, e incomoda ver uma mulher usar o peito não como objeto para o desejo masculino, mas como componente de uma relação entre mãe e bebê, incompreensível e excludente para o homem. Chega a ser considerado imoral amamentar uma criança um pouco maior, por ser projetada na criança ou na mãe uma intenção sexual. Psicólogos divergem com relação aos benefícios da amamentação continuada, mas não há evidências sobre nenhuma das alegações de danos à educação da criança ou sua independência devidos ao aleitamento materno.
“ELE PRESCREVEU DESMAMAR O LEITE MATERNO E CARIMBOU. DEPOIS ME PERGUNTOU: VAI DESMAMAR NA FACULDADE?” — Mãe sobre consulta com pediatra para bebê de menos de 18 meses
Número de casos relatados por categoria, com a idade do bebê em questão representada pelo tamanho dos símbolos. É possível perceber que algumas categorias específicas como peso insatisfatório são mais comuns em crianças recém-nascidas, enquanto as categorias mais repletas de crianças mais velhas são referentes à leite fraco, ou “falta de necessidade” do bebê.
A motivação mais comum para recomendar o desmame em bebês mais velhos e crianças, é talvez a mais estapafúrdia: a de que o leite se torna “água”, significando que ele não possui mais valor nutricional para o bebê. Não sei muito bem explicar de onde surge esse conceito. E portanto desconfio que seja apenas um disfarce para os incômodos gerados pelos motivos culturais. Para mim entram nessa mesma categoria as histórias de mulheres que ouvem que o leite materno causa cáries (não causa) e que atrapalha a introdução alimentar (não atrapalha). Contraditoriamente , esses profissionais recomendam fórmula e leite de vaca para bia parte das crianças. Embora o leite materno não seja suficiente para aplacar todas as necessidades nutricionais da criança a partir de 6 meses (gradualmente), ele continua oferecendo nutrientes essenciais e continua oferecendo proteção imunológica exclusiva e adaptável.
“FUI A UMA CONSULTA PARA VER SE PRECISAVA TROCAR O ANTICONCEPCIONAL A PARTIR DOS SEIS MESES, DAÍ ELA ME FALOU Q PODIA TOMAR QUALQUER UM. PERGUNTEI SE NÃO SECARIA MEU LEITE, ELA FALOU QUE DEPOIS DE SEIS MESES NÃO TEM PORQUE TER NENÊ PENDURADO EM TETA, QUE ATÉ OS SEIS MESES TUDO BEM QUERER AMAMENTAR MAS DEPOIS DISSO ELES NÃO PRECISAM E NÃO TEM PORQUÊ.” — Mãe sobre consulta com ginecologista
Outro motivo alegado por profissionais para o desmame é frequentemente fútil: para que a mãe faça uso de uma medicação incompatível com a amamentação. Embora em muitos casos, especialmente quando existe a necessidade de um tratamento prolongado como para uma doença crônica, esse seja um motivo real, em inúmeros deles seria possível substituir a medicação por outra, ou trabalhar com a mãe em estratégias para permitir o retorno à amamentação após o tratamento. Para ajudar as mães e médicos na missão de fazer uma análise crítica de quais medicações podem ser utilizadas e substituídas, existe a iniciativa maravilhosa do site e-lactancia que funciona como um banco de dados em inglês e espanhol e inclui ervas, suplementos e alimentos, e que recomendo fortemente (http://e-lactancia.org/).
A fórmula mágica
“TEM LEITE DE FÓRMULA QUE É IGUAL AO LEITE MATERNO, NÃO PRECISA MAIS AMAMENTAR NÃO.” — Pediatra
Enfim, embora as novas formulações de leites sejam uma tecnologia incrível que salva vidas e que ajuda milhões de famílias a alimentar seus bebês, há a questão ética da influência dessa indústria sobre os profissionais de saúde responsáveis por estimular a amamentação. Não raramente, convenções, congressos e eventos de pediatria recebem patrocínio de empresas interessadas nesse poder. Médicos recebem promotores de vendas em seus consultórios, permitem panfletagem. Aproximadamente 2/3 dos profissionais citados recomendaram o uso de fórmulas, sendo essa recomendação mais frequente e direcionada a uma marca específica entre os pediatras (ver figura abaixo). A publicidade apresenta a fórmula como algo superior ao que é de fato, e infelizmente alguns profissionais possuem a desonestidade de participar das vendas promovendo o produto como se fosse uma alternativa conveniente e 100% equivalente ao leite humano. Muitos prescrevem a fórmula como “precaução”, para “caso seja necessário”, e contam com a insegurança da mãe com o bebê que chora, e muitas vezes com a pressão da sociedade ao redor dela, para que a venda seja efetuada com sucesso independentemente da necessidade real do bebê.
Proporção de recomendação de leites artificiais e se o leite recomendado possuía uma marca específica.
A importância das comunidades presenciais e virtuais
Diante da falta de confiança nos profissionais geradas por esse tipo de comportamento, muitas mulheres buscam ajuda na internet. O problema é que uma pesquisa numa ferramenta de busca não traz necessariamente informações de qualidade. Muito pelo contrário, há uma avalanche de opiniões que pode confundir ainda mais qualquer pessoa. Nesse contexto, eu fui surpreendida com a utilidade das redes sociais para busca de apoio. Comunidades autodeclaradas apoiadoras da amamentação em geral possuem informações úteis, são capazes de prover respostas personalizadas e referências quando requisitadas. Minha introdução a esse universo foi através do blog/comunidade GVA (Grupo virtual de amamentação). Uma iniciativa séria e voluntária para apoiar lactantes. Embora eu não concorde com tudo que é apresentado em algumas dessas comunidades, não há como negar que elas foram fundamentais para que eu permanecesse tranquila e paciente durante o processo de aprendizado da amamentação.
Apenas uma pequena porcentagem de mães que participaram da coleta foram induzidas ao desmame por essas ocorrências, possivelmente demonstrando um viés da amostra (pelo fato de o formulário ter sido divulgado em grupos pró-amamentação)
Minha comunidade de mulheres mães, amigas e colegas de confiança, foram o segundo pilar para essa tranquilidade. Muitas vezes quando restringimos nossas questões aos médicos, nos parece que estamos sozinhas ou que somos casos isolados, mas nunca estamos. Sempre vieram outras antes de nós para aprendermos com seus erros e acertos, e a internet pode trazê-las pra perto, felizmente. Devido ao maior número de respostas desse formulário ter vindo de grupos assim, há um viés nessas respostas: a maior parte das mulheres não foi induzida ao desmame, e tinha confiança o suficiente para buscar auxílio em outros profissionais, ignorar as más recomendações, e seguir em frente. Esse poder trazido pelo apoio dos grupos é o que eu desejo que se extenda para todas nós. Se toda sociedade estiver munida de informações de qualidade, o apoio à amamentação pode deixar de ser algo de campanhas de TV e algo teórico, da boca pra fora.
O apoio para a amamentação tem que deixar de considerar apenas o cenário ideal do bebê recém-nascido com pega perfeita a partir do instante zero, nascida do parto humanizado, filha de pais com estrutura e tempo. Todos precisamos ser rede de apoio para as lactantes. Para isso é preciso informação. É preciso falar sobre as dificuldades, eliminar as lendas e os preconceitos. Essa coleta de informações tem como objetivo isso: mostrar para mães que passam por isso que não estão sós, e para a sociedade que existe um problema na forma como nossos profissionais estão tratando as mães e as crianças também após o parto.
Se podemos nos escandalizar com essas histórias, podemos evitar que se repitam, ou ao menos, como diz o slogan da Semana mundial de amamentação 2019, empoderar mães e pais. Dar o poder ao menos de procurar outra opinião, de buscar outro apoio, de questionar quando parece haver algo mais a se fazer para viver a amamentação de uma forma mais leve e satisfatória.
A lista completa atual de histórias está disponível aqui. As palavras até aqui são minhas, mas essa lista é pública. Quem desejar mais informações, ou acesso aos dados para fins relacionados, pode me solicitar por e-mail (elgabandeira@gmail.com).
Se você acredita que o profissional que te atendeu foi antiético, inapropriado ou abusivo, faça uma denúncia à ouvidoria do SUS (Disque Saúde 136, ligação gratuita) ou ao plano de saúde, hospital ou clínica sob o qual o ele te atendeu, ou ainda denuncie ao conselho federal ou regional da profissão.
Eu, particularmente recomendo em redes sociais os grupos de Facebook Matrice e GVA para tirar dúvidas relacionadas à amamentação e conversar com outras mulheres experientes, e o perfil do Instagram @gabicbs para informações com sensibilidade e sem fugir de oferecer referências bibliográficas. Sei que existem muitos ótimos perfis, profissionais e grupos que geram comunidades nessas redes, esses são meus favoritos pessoais apenas. Peço para que também recomendem grupos de apoio locais e dicas de profissionais de confiança, caso possuam, nos comentários abaixo.
Muitas informações importantes estão disponíveis no site da própria OMS e através do Ministério da Saúde, que possui um caderno de atenção básica sobre amamentação e alimentação complementar disponível aqui.
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